Natureza Viva

Victor Lucky
4 min readNov 16, 2020

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- Ela é minha filha! — Rugiu a Deusa com uma cabeça de rinoceronte.

- Sempre respeitarei isso, minha querida irmã. — Era o homem de trança multicolorida — mas o destino dela é maior que você, talvez maior que eu também.

As duas criaturas se olhavam de maneira estranha. Allihanna, a Deusa da Natureza, olhava Kallyadranoch com muitos olhos, de muitas cabeças diferentes que pareciam mudar a cada segundo. O Deus dos Dragões a olhava de volta, em sua forma humanoide, com um par de olhos que poderia também ser muitos, tamanho seu poder.

- Existe algo especial sobre aquela barda, irmã. Sei que você também sente. Ela pode nos ser útil.

- Útil a você, talvez. — Allihanna não era uma deusa dada à argumentação estratégica. Preferia a simplicidade natural das coisas. Para ela, sua filha era sua filha, e deveria cumprir o papel que lhe foi dado.

- Útil a todos nós. — As palavras praticamente se calculavam sozinhas antes de sair da boca de Kallyadranoch. Ele, o oposto de sua irmã, antecipava cada ação feita por si.

Allihanna sabia que o Deus dos Dragões não era digno de confiança, mas quis ouvir mais. Sentou-se nas patas traseiras e com uma cara lupina, fez que continuasse:

- Ela pode trazer grande equilíbrio para as forças naturais de Arton, irmã. Imagine só, humanos novamente temendo o poder das criaturas que espreitam nas sombras. A civilização pensando duas ou mais vezes antes de adentrar terrenos desconhecidos. O mundo não vai apenas temer meus filhos, mas também conhecer o poder das meio-dríades, conhecer o poder das Filhas de Allihanna! Ah, a maravilha em ser capaz de, mais uma vez, impor sua vontade sobre os mortais. Seria maravilhoso, não?

- Humanos temendo criaturas das sombras? Isso parece conversa de Megalokk. — A Deusa da Natureza falava de seu irmão-rival, o Deus dos Monstros.

- De maneira alguma! — Kallyadranoch sorria, era exatamente a conclusão que ele esperava dela. — Você acha que eu deixaria nosso irmão bestial levar algum louro disso? Irmã, você nunca saberá a dor de ser esquecida por seus filhos. De ter suas criações se voltando a um deus que não lhes é pai. De saber que humanos atribuem as criaturas mais magníficas de Arton a um deus que sequer é capaz de concatenar um raciocínio simples. Não, minha querida Allihanna, isso não é conversa de Megalokk.

A deusa multiforme pensava um pouco, e a cada pensamento, suas cabeças mudavam de aparência. Levantou-se num movimento brusco e pateou o chão com um casco dianteiro. Parecia tão difícil se concentrar naquela questão, mas achava que há muito deixava seus irmãos tomarem decisões em seu nome. Precisava se posicionar de algum jeito.

- O que propõe, exatamente? — Perguntou com uma cabeça de unicórnio.

Kallyadranoch escondeu um sorriso de vitória e disse:

- Que você me permita usá-la enquanto for interessante a mim. Prometo que não a farei mal, e jamais irei me colocar entre Prunna e a sua Natureza. Ela será minha Campeã, sim, mas ainda será uma das meio-dríades mais maravilhosas que Arton já viu.

Allihanna não conseguia se decidir, mas parecia satisfeita com a resposta do irmão:

- Muito bem. Que ela lute por sua causa, desde que sua essência permaneça a minha. Que vossa benção seja farta e que ela colha os louros da causa draconiana. Eu não irei interferir, mas observarei de longe. O destino de Prunna estará em suas mãos, ao menos por enquanto.

- Não, minha irmã. — Kallyadranoch tentou o que considerava um pouco de humor — os nossos destinos estão nas mãos dela.

Allihanna fez uma mesura animalesca e foi embora do salão magnifico do Deus dos Dragões. Kallyadranoch sentou-se em uma cadeira muito luxuosa, sorrindo vitorioso. Não era difícil manipular seus irmãos mais brutos e bestiais a fazerem suas vontades. Ele reinava absoluto como um dos deuses mais inteligentes do Panteão. Inteligente e orgulhoso. Como todo Dragão.

***

Na floresta sem fim de Arbória, o Reino de Allihanna, a Deusa abençoava suas criaturas amadas. Tudo era vivo ao seu redor, tudo tinha seu lugar natural. Caminhou entre todos os tipos imagináveis de animais, muitos dos quais já não existiam mais em Arton. Eles a adoravam e temiam, eram filhos observando uma mãe muito justa.

Foi avistada por alguns seguidores de forma humanoide. Criaturas da floresta. Alguns humanos, outros não. Todos inteligentes e ferrenhos em sua devoção à Deusa da Natureza. Um xamã muito velho fez uma reverencia precisa à sua Deusa e a cumprimentou:

- Minha Senhora, como podemos ser úteis?

- Os preparativos estão prontos, Alto Xamã. Em breve enviaremos visões aos seus irmãos em Arton. Prepararemos os druidas, os guerreiros, os rangers e todos os que me amam. Existe uma mensagem clara que será enviada ao mundo, muito em breve.

Allihanna sorria com a boca de um gorila. Como era fácil fingir ser simples e estúpida. Seu irmão era tão inteligente e orgulhoso, tão fácil de ser enganado. Prunna lutaria por dragões, sim. Mas o que ela faria pela natureza era algo muito, muito maior. Seu destino jamais estaria nas mãos dos dragões, e sim ao lado de sua deusa criadora. Seu Alto Xamã perguntou:

- Minha Deusa, se me permite, que mensagem é essa?

- Que a Mãe Natureza sou Eu. — Sorria com os olhos de um gato — e que Eu estou cansada de ver meu território sofrendo pelos caprichos de seres tão mesquinhos e odiosos.

Allihanna rugiu com todas as suas cabeças. E com elas, rugiram todos os animais de Arbória. A Natureza era viva. A Natureza era eterna.

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